Estamos no século XXI e usamos uma contabilidade pública anterior ao Marquês de Pombal

O problema das contas públicas portuguesas não é apenas o seu persistente desequilíbrio, mas a forma como elas são geridas e como está organizada a sua contabilidade. Na conferência "Reforma das Finanças Públicas em Portugal", organizada esta manhã na Faculdade de Direito, os defeitos do sistema existente foram sublinhados, tendo sido sugeridas soluções, nomeadamente um exemplo vindo literalmente do outro lado do mundo.

Carlos Baptista Lobo, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, criticou alguns dos dogmas das finanças públicas, como a não consignação da despesa. "A não consignação é um acto de desresponsabilização", afirmou. "O responsável pela despesa quer gastar sem ter de se preocupar com a receita. Temos de ligar a arrecadação da receita à despesa."

Baptista Lobo notou ainda que os últimos anos trouxeram alguma confusão semântica. "Tenho saudades da palavra rigor. Ela foi transformada em austeridade. Nós queremos contas rigorosas. A austeridade pode não ser rigorosa e nós não precisamos de austeridade se tivermos rigor", sublinhou.

Outro problema – mas cuja solução é mais ambiciosa – é o facto de a contabilidade pública se concentrar na entrada e saída de dinheiro, ignorando o património do Estado. A atenção é dirigida para indicadores como a dívida pública, praticamente ignorando o activo. Na nossa vida privada, se olharmos apenas para aquilo que devemos – por, exemplo, ao banco para comprar casa – e não para o nosso património, muitos de nós estaríamos falidos.

Esta lógica que utilizamos na gestão de contas cria incentivos nocivos. Se o património fosse relevante para apurar o equilíbrio financeiro do Estado, os governos teriam mais incentivos para cuidar dele e torná-lo num activo produtivo. Pense em terrenos florestais ou em imobiliário. Poderiam ser cadastrados e reabilitados, respectivamente. Hoje, reabilitar um prédio do Estado significa apenas mais despesa. A inércia seria menos tentadora se o activo assumisse um papel mais central.

"Temos de passar para um modelo distinto de finanças públicas", acrescentou o actual vice-reitor da Universidade de Lisboa. "Estamos no século XXI e usamos contabilidade anterior ao Marquês Pombal." O antigo secretário de Estado do Reino foi mais que uma vez referido ao longo da conferência pela ambição das suas ideias nesta área.

Talvez estas sejam mudanças muito ambiciosas. Mas o processo orçamental pode melhorar com alterações menos radicais. Implementar a nova Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) seria um passo importante. No final do ano passado, o Governo criou uma Unidade de Implementação da LEO.

Outro passo decisivo seria ter mais clareza e rapidez na informação. Ainda recentemente, no espaço de poucos dias, o INE publicou o défice do primeiro trimestre (em contabilidade nacional) e a DGO divulgou o défice de Maio (em contabilidade pública). "Nos jornais está tudo bem explicado para quem domina estes conceitos. Mas confunde: estamos melhor ou pior?", questionou Hélder Reis, ex-secretário de Estado do Orçamento.

Além da confusão de conceitos, os governos demoram tempo a saber o que está a acontecer no terreno. Por exemplo, só a meio de Agosto será conhecido o défice da primeira metade do ano que interessa a Bruxelas. "O desfasamento temporal dificulta a tomada de decisão", aponta Hélder Reis, que reclama que seja o Ministério das Finanças a assumir um acompanhamento mais apertado e em cima do acontecimento.

 

Exemplo do outro lado do mundo

A conferência pretendeu olhar para países que tenham tentado outras soluções. Um dos oradores foi Ian Ball, responsável pela reforma das finanças públicas efectuada na Nova Zelândia nos anos 90, amplamente estudada internacionalmente. "Deram-nos uma folha em branco e disseram-nos: "desenha algo que faça o Governo funcionar melhor", recordou.

O país foi pioneiro ao afastar as contas públicas de uma lógica meramente de caixa, tendo sido depois seguido, por exemplo, pelo Reino Unido (embora Ball argumente que a lógica britânica mantém ainda muitas características de caixa).

Vincent Truglia, classificado por outro dos oradores como o "pai dos ratings soberanos", trabalhava na Moody’s na altura da reforma neozelandesa e refere que um elemento de credibilidade dos neozelandeses era o facto de as agências "acreditarem naquilo que [eles] lhes diziam". Algo que não acontece em todos os países. "Estão sempre a tentar enganar-nos."

Da perspectiva do investidor, Paul Kazarian, da Japonica, sublinhou que, segundo as suas simulações, Portugal tem activos e passivos de uma dimensão assinalável. Isso exige uma gestão mais activa dos mesmos. A sua principal preocupação com o país é o tempo. Não o clima. Esse é excelente e até levou a empresa a vir para Portugal. Mas sim a rapidez. "Tem de acelerar. Esta reforma das contas públicas não pode ficar sempre para amanhã."

Fonte: jornaldenegocios.pt